Catálise Enzimática

Catalisando a Hidrólise da Ureia em Urina

Vanessa Vivian de Almeida , Elton Guntendorfer Bonafé, Flávia Braidotti Stevanato, Nilson Evelázio de Souza, Jeane Eliete Laguila Visentainer, Makoto Matsushita, Jesuí Vergílio Visentainer
Originalmente publicado em Química Nova na Escola, n. 28, maio 2008
Apoio: Sociedade Brasileira de Química
Edição: Leila Cardoso Teruya
Coordenação: Guilherme Andrade Marson

Na natureza, constatamos transformações químicas ocorrendo o tempo todo ao nosso redor. Enquanto algumas dessas transformações acontecem rapidamente (como a explosão da dinamite), outras são mais demoradas como, por exemplo, a formação do petróleo. Podemos destacar ainda as transformações que se desenvolvem numa velocidade moderada, como a deterioração dos alimentos por bactérias. Por sua vez, a velocidade das reações de degradação de alimentos de origem vegetal (como frutas e verduras) pode ser mais ou menos rápida, dependendo de fatores existentes no meio como, por exemplo, atividade de água, temperatura e composição do alimento.


A Cinética Química é uma ciência que estuda a velocidade das reações químicas e os fatores que as influenciam. Dentre os diversos fatores que interferem na velocidade de uma reação (temperatura, concentração de reagentes, superfície de contato, entre outros), podemos destacar a presença de catalisadores.


Catalisadores são substâncias que aumentam a velocidade das reações químicas e não são consumidos durante o processo, sendo regenerados no final. Eles atuam diminuindo a barreira de energia necessária aos reagentes para que ocorra a transformação química, como mostra a Figura 1. Essa energia é chamada de energia de ativação, ou seja, é a energia mínima necessária para que os reagentes possam se transformar em produtos. Caso a reação ocorra sem a presença de um catalisador, a energia de ativação é maior, diminuindo assim a velocidade da reação.


Figura 1: Efeito do uso de catalisadores na velocidade da reação química.

Figura 1: Efeito do uso de catalisadores na velocidade da reação química.

Ao atingir a energia de ativação, é formado o complexo ativado, que é uma estrutura intermediária entre os reagentes e os produtos, com ligações intermediárias entre as dos reagentes e as dos produtos. O complexo ativado apresenta uma energia mais alta para a molécula ou o elemento original. Esse aumento de energia, chamado de entalpia de ativação ΔH, representa exatamente a energia necessária para quebrar as ligações na molécula e formar o complexo ativado, que se decompõe posteriormente nos produtos.


Sendo catalisadores celulares poderosos, as enzimas são proteínas especializadas em acelerar reações biológicas e geralmente atuam especificamente em um dado substrato. O substrato liga-se à enzima num sítio especial desta, chamado sítio ativo, onde ocorre a reação enzimática. Essa é a região da enzima que possui certos aminoácidos que se ligam ao substrato por ligações não covalentes (Motta, 2006).


Características da urease

A urease é uma enzima que, em meio aquoso, catalisa a hidrólise da uréia em amônia e dióxido de carbono (Figura 2) e ocorre em algumas sementes, tais como soja, melão, melancia, entre outras. Algumas enzimas requerem um componente não protéico para sua atividade denominado cofator. O cofator enzimático da urease é o íon metálico Ni2+ (Ciurli e cols., 1999), portanto, a presença de íons de níquel ativa o sítio da urease e é essencial tanto para a atividade funcional como para a integridade estrutural dessa enzima.


Figura 2: Reação de decomposição da uréia e caráter básico da amônia em meio aquoso.

Figura 2: Reação de decomposição da uréia e caráter básico da amônia em meio aquoso.

Além de ter sido a primeira enzima isolada na forma cristalina, em 1926, a urease é uma substância extensamente estudada, devido à sua aplicabilidade na agricultura e na medicina. Atualmente a urease é utilizada em procedimentos de diagnósticos clínicos, na determinação de uréia em fluídos biológicos como urina e sangue. A hidrólise da uréia, empregando essa enzima como biocatalisador, na temperatura de 20°C, é até 1014 vezes mais rápida que a hidrólise realizada em meio ácido a uma temperatura de 60 °C (Souza e Fatibello-Filho, 2006).


A urina humana é constituída de 2 a 5% em uréia. Essa é a forma utilizada pelo metabolismo do organismo para eliminar os resíduos nitrogenados indesejáveis produzidos a partir das proteínas. Atualmente, a uréia é utilizada como suplemento na alimentação de animais, na agricultura (como fertilizante), na fabricação de plásticos, na indústria farmacêutica, entre outros (Peruzzo e Canto, 1999).


Influência do meio sobre a atividade enzimática

A estrutura e a forma do sítio ativo das enzimas são decorrentes da estrura tridimensional da enzima e podem ser afetadas por quaisquer agentes capazes de provocar mudanças conformacionais na estrutura protéica. Isso torna a atividade enzimática dependente do meio em que se encontra, notadamente do pH e da temperatura.


Efeito do pH sobre a atividade enzimática

Geralmente as enzimas são ativas em uma estreita faixa de pH e, na maioria dos casos, há um pH ótimo definido. A Figura 3 apresenta a curva do efeito do pH na atividade enzimática. Podemos verificar que o pH ótimo da enzima é definido pelo máximo da curva. Um estudo sobre purificação de urease obtida de sementes de melancia verificou que essa enzima possui atividade ótima em pH 8,0 (Mohamed e cols., 1999).


Figura 3: Curva do efeito do pH na atividade enzimática.

Figura 3: Curva do efeito do pH na atividade enzimática.

O efeito do pH sobre a atividade enzimática se deve às variações no estado de ionização dos componen tes do sistema e à medida que o pH varia. Como as enzimas são proteínas, contêm inúmeros grupos ionizáveis e existem em diferentes estados de ionização. Por isso, a atividade catalítica é restrita a uma pequena faixa de pH.


É importante destacar, contudo, que a estabilidade da enzima ao pH ótimo depende inclusive de muitos fatores como temperatura, força iônica, concentração de íons metálicos, concentração de substratos ou cofatores da enzima, contaminantes (metais pesados e fluoreto, acima de 2,0 mg/dL, são inibidores da urease), entre outros (Bioclin, 2006).


Efeito da temperatura sobre reações enzimáticas

O efeito da temperatura sobre a cinética de reação enzimática é resultado de dois eventos simultâneos.


O primeiro evento é caracterizado pelo aumento na velocidade da reação catalisada em resposta ao aumento da temperatura do sistema. A elevação da temperatura provoca o aumento da energia cinética das moléculas componentes do sistema. Esse efeito é observado em um intervalo de temperatura compatível com a estrutura espacial da enzima.


No segundo evento, temperaturas mais altas levam à desnaturação enzimática por alterarem as ligações que conservam a estrutura tridimensional da enzima. Após o rompimento das ligações de hidrogênio, que são termolábeis, desencadeia-se uma série de alterações na estrutura enzimática, levando a uma nova conformação ou a um estado conformacional indefinido.


A maioria das proteínas (incluindo as enzimas) é passível de desnaturação irreversível a temperaturas acima de 40 ºC ou 50 ºC, porém a temperatura ótima de uma enzima é um termo sem significado até que seja registrado o tempo de sua exposição a essa temperatura, assim como a composição do meio em análise, pH e força iônica, por exemplo (Morris, 1972). No estudo sobre urease extraída de sementes de melancia, Mohamed e colaboradores (1999) acompanharam o comportamento dessa enzima submetida à temperatura de 40 ºC durante 30 minutos em pH 7,5 e verificaram que não houve perda significativa da atividade enzimática. A mesma enzima, submetida a 80 ºC por 5 minutos, teve perda total da atividade catalítica.


O experimento proposto neste artigo utiliza materiais de fácil acessibilidade e ilustra a reação de decomposição da uréia em urina humana, catalisada por urease obtida de sementes de melancia. Contudo, a utilização de urina deve ser tratada com devida atenção pelo professor, pois se trata de um substrato que apresenta diferenciados valores de pHs e concentração de sais. A reação pode ser lenta caso o meio reacional interfira no sítio ativo enzimático, devido à ionização de aminoácidos na molécula que provoquem mudança da conformação da enzima.


Nota

O artigo originalmente também propõe um experimento simples, realizado com material de fácil aquisição, para ilustrar a hidrólise da uréia em urina catalisada pela urease extraída de sementes de melancia.

  • Referências
    1. BERNARDINO, A.M.R.; PEREIRA, A.S.; ARARIPE, D.R.; SOUZA, N.A. e AZEVEDO R.V.D. Antocianinas - papel indicador de pH e estudo da estabilidade da solução de repolho roxo, 2000.
    2. BIOCLIN. Uréia Cinética, 2006.
    3. CIURLI, S.; BENINI, S.; RYPNIEWSKI, W.R.; WILSON, K.S.; MELETTI, S. e MANGANI, S. Structural properties of the nickel ions in urease: novel insights into the catalytic and inhibition mechanisms. Coordination Chemistry Reviews, v. 190-192, p. 331-355, 1999.
    4. COUTO, A.B.; RAMOS, L.A. e CAVAL- HEIRO, E.T.G. Aplicação de pigmentos de flores no ensino de química. Química Nova, v. 21, n. 2, p. 221-227, 1998.
    5. DIAGNÓSTICOS DA AMÉRICA. Urina, 2006.
    6. MOHAMED, T.M.; MOHAMED, M.A.; MOHAMED, S.A. e FAHMY, A.S. Purification of urease from water melon seeds for clinical diagnostic kits. Bioresource Technology, v. 68, p. 215-223, 1999.
    7. MORRIS J.G. Físico-Química para Biólogos. Trad. M. N. Cipolli. São Paulo: Polígono, 1972.
    8. MOTTA, V.T. Bioquímica Básica – Enzimas, 2006.
    9. PERUZZO, T.M. e CANTO, E.L. Coleção base: Química. São Paulo: Moderna, 1999.
    10. SOUZA, F.S. e FATIBELLO-FILHO, O. Obtenção, caracterização e purificação da enzima urease de feijão guandu (Cajanus cajan L. Milsp). Congresso de Iniciação Científica, 14, 2006, São Carlos. Anais de Eventos da UFSCar, v. 2, p.731, 2006.
    11. TERCI, D.B.L. e ROSSI, A.V. Indicadores naturais de pH: usar papel ou solução? Química Nova, v. 25, n. 4, p. 684-688, 2002.